Ainda a Desabrochar Plenamente

Abolição sem reparação econômica social é servidão continuada

Crédito: Pixabay

 Como nativo de São Carlos, na região central do estado de São Paulo, sempre achava que o Grêmio Recreativo Flor de Maio – clube criado por negras e negros no final dos anos 20 do século passado (resistente até os presentes dias) , quando eram proibidos de frequentar as agremiações sociais da época, costumeiramente fundados pelas clsses médias e altas da cidade – tivera seu nome como uma homenagem ao mês em que, finalmente no Brasil, fosse, legalmente, abolida a escravidão como forma de produção.

Foi através de uma das edições do programa “Pé de Quê? Apresentado pela Regina Casé na TV Futura, que fui alertado para o fato de que a “Flor de Maio”  trata-se, na realidade histórica, da Camélia (Camelia japônica) planta que produz flores belíssimas, com duas variedades naturais, brancas e róseo avermelhadas, usadas pelos abolicionistas brasileiros, na segunda metade do século XIX, nas lapelas dos paletós ou plantadas à frente de seus jardins, como identificação. 

No Rio de Janeiro, quilombos como um existente no Leblon, produziam camélias que eram vendidas e o dinheiro arrecadado usado para alforriar (libertar) negros escravizados.  Alguns dizem até mesmo que quando a Princesa Isabel decidiu promulgar a Lei Áurea, escolheu o mês de maio por ser o mês em que esta flor desabrocha. Conta-se que Isabel, era de fato uma abolicionista que há muitos anos participava de ‘tertúlias’ (reuniões) onde eram arrecadados recursos para as campanhas abolicionistas.

O movimento negro no Brasil, justificadamente, esforça-se para retificar a história    oficial que descreve a abolição da escravatura no Brasil como uma dádiva da Princesa Isabel, preterindo as lutas e rebeliões seculares de negros e índios escravizados. São mais de 4.000 quilombos que existem ainda hoje, apenas como um exemplo a demonstrar a resistência negra à escravidão.

Contudo, não devemos menosprezar a importância do movimento abolicionista desenvolvido principalmente nas cidades, especialmente na capital do país, à época o Rio de Janeiro; e a figura da Princesa Isabel.

A abolição da escravatura foi, certamente, um dos ingredientes que levaram ao golpe militar que proclamou a República no Brasil. Sim, golpe militar! Não podemos esquecer que o Marechal Deodoro da Fonseca era na ocasião, nada mais, nada menos, que o Ministro da Guerra do Imperador! Ou seja, o maior encarregado da defesa do Império e seu chefe: D. Pedro II. A Proclamação da República foi uma quartelada, sem participação popular, ainda que apoiada por muitos intelectuais progressistas.

As elites econômicas brasileiras dominantes à época, predominantemente agrárias, tinham no regime escravocrata a sustentação de suas riquezas. A pressão externa – sobretudo da Inglaterra, mas também dos EUA que na Guerra da Secessão haviam abolido a escravidão – das economias capitalistas, por motivações humanitárias e econômicas, trabalhavam pela criação de mercados de consumo (escravo não tem renda, portanto não consome) e para isso era preciso homens ‘livres’.  Desde a década de trinta do século XIX o governo brasileiro fazia de conta que (leis “para inglês ver”) que, gradualmente, libertava os escravizados.

A contrariedade de nossas elites agrárias com a abolição promovida pela Princesa Isabel era pelo fato de que além de acabar com a força de trabalho escrava, não indenizou os proprietários de escravos como exigiam. Afinal, reivindicavam, que eles ou seus ascendentes haviam comprado os escravos.

Mas ainda um temor maior dominava os senhores da terra em relação à postura do Imperador e sua filha em relação à política anti-escravagista. Ainda que na assinatura da Lei Áurea (uma lei com apenas dois artigos) não tivesse promovido qualquer espécie de reparação econômica para aqueles que por cerca de 400 anos construíram a não brasileira, já havia, no Senado, propostas de projetos de lei para promoção – a exemplo do que fez Abraham Lincoln nos EUA – de uma reforma agrária que garantisse aos negros um pedaço de terra para garantia de sua subsistência. Antes que o ‘pior’ acontecesse trataram de proclamar a República. Uma República que, como nossa Independência, deu-se ‘por cima’, sem a participação popular.

Camélia, Flor de Maio: Por que tornou-se Símbolo da Liberdade?    

Em 1848, Alexandre Duma Filho (1824–1895), publica na França o romance “Dama das Camélia”, um estrondoso sucesso editorial que quase supera as obras de seu pai, Alexandre Dumas (1802–1870) , autor de obras como “O Conde de Monte Cristo” e “Os Três Mosqueteiros”.  Para dar só uma ideia do sucesso quase instantâneo de “A Dama das Camélias”, em 1853, apenas cinco anos após sua publicação, Giusepe Verdi, na Itália, estreia sua famosíssima ópera “La Triviatta” ( A Mulher Caída), inteiramente baseada no romance de Dumas Filho. Dezenas de versões para teatro e cinema já foram feitas de “A Dama das Camélias”.    

Nesse romance, escrito com acentuado caráter autobiográfico, um estudante de Direito de poucas posses (Armand Duvall), apaixona-se por uma  cortesã (prostitua de alta classe) parisiense – Marguerite Gautie. Esta, inicialmente, debocha do amor do jovem advogado, mas, aos poucos, entrega-se àquilo que sente como seu único amor verdadeiro, contrário ao dos amantes ou clientes que sustentavam seus luxos e suas extravagâncias. O epíteto de ‘Dama das Camélias’ vinha do fato de gostar muito de camélias e sempre ter seus vestidos adornados por pelo menos uma camélia: branca, quando estava ‘disponível’; róseo-avermelhadas, quando estava com as  ‘regras’.   

Porém, o pai de Armand opõe-se ao romance, pois representa um escândalo social que impediria que a irmã de Armand desposasse um nobre pretendente. Pressionada Marguerite rompe seu romance, sem revelar o verdadeiro motivo e retorna à sua vida de cortesã. Armand, sentindo-se traído, busca vingar-se comprando os serviços de outras cortesãs. Apenas após a morte de Marguerite – que sofria de tubérculos – Armand toma conhecimento do verdadeiro motivo do afastamento de sua amada.      

Pois sim, a estória ou história de um amor proibido, certamente suscita a ideia de liberdade e por isso, no meu julgamento inicial, a camélia tornara-se símbolo da liberdade na Europa e adotada pelos abolicionistas brasileiros, à época profundamente influenciados pela cultura francesa.

Os Dois Estigmas de Alexandre Dumas Filho

Mas foi só ao ler, por mera curiosidade, a biografia de Alexandre Dumas Filho, que vim a deduzir  – creio eu – a verdadeira razão pela qual a camélia – nome dado pelo naturalista sueco Lineu (1707 – 1774), criador do atual sistema de classificação e nomenclara científica das espécies vivas, em homenagem a um[P1]   missionário jesuíta e importante boticário: Jiří Josef Camel (1661-1705)  – tronou-se um belo símbolo do abolicionismo no Brasil.

A breve biografias do romântico e bem sucedido autor francês revelava que Alexandre Dumas Filho teve dois estigmas em sua vida.

O primeiro por ser filho ‘natural’. Foi fruto de um relacionamento extraconjugal de seu pai com uma costureira. Só foi reconhecido por Alexandre Dumas quando já tinha uns 7 ou 8 anos. Depois desse reconhecimento o pai proporcionou-lhe bons estudos que levaram o filho a uma estatura intelectual semelhante ao pai.

O segundo estigma é que ‘matou a charada’: Alexandre Dumas Filho tinha sangue negro! Logo imaginei que fosse por parte da mãe, de origem pobre. Mas, não. Sua ascendência negra vinha pelo pai, o famoso Alexandre Dumas.

Alexandre Dumas era neto de um nobre (marquês) francês com uma negra haitiana, à época em que o Haiti era uma colônia francesa. Esse sangue mestiço, num século marcado na Europa e colônias pelo predomínio de teorias racistas, impediram que Alexandre Dumas, como escritor francês mundialmente mais lido e traduzido, recebesse reconhecimento oficial do Estado francês, como outros de seus grandes escritores.

Apenas em 2002, 132 anos após sua morte, os restos mortais de Alexandre Dumas foram retirados da cidade do interior da França onde nasceu e levados até o Panteão de Paris, onde estão enterrados grandes personalidades francesas com Victor Hugo, Voltaire, Rousseau. etc. Na ocasião, Jacques Chirac, então presidente francês (de centro-direita) reconheceu que o racismo havia induzido o Estado francês à erro pelo reconhecimento tardio.     

Obviamente, tanto Alexandre Dumas pai, como o filho, eram abolicionistas, até mesmo porque foram vítimas do racismo dominante na época em que viveram; e provas vivas – pelo talento, inteligência e sucesso – do odioso e violento erro que o (pre)conceito da supremacia da raça branca, representou e – infelizmente – ainda representa para nossa sociedade, especialmente no Brasil: país onde o racismo explicito na escandalosa desigualdade econômica e social (com enorme e vergonhosa maioria da população negra e mulata entre os pobres, nas favelas e assassinados pelas forças de segurança); e pelo dia-a-dia em que  negros e negras enfrentam um racismo velado, muitas vezes inconsciente, mas sempre  desumano.

É interessante que esse belo símbolo da liberdade na segunda metade do século XIX decorra de uma mulher ’ libertina’ e seu amor ‘proibido’. Mulheres que, como escravos, também eram objetos de compra e venda. Daí, talvez, a simpatia dos negros e negras com “A Dama das Camélias”, romance – ainda que um tanto edulcorado –  escrito por um romancista com sangue negro nas veias.       

Que as camélias que estão a desabrochar nesse maio de 2019 nos inspire a continuar na lutar, como no vitorioso samba-enredo da Mangueira desse Carnaval, para que o “sangue retinto pisado” dos verdadeiros heróis e heroínas – Marias, Mahins, Marielles e males – de nosso povo, não tenham vertido em vão, e, afastando as sombras de ódio, violência, saque, retrocesso colonialista e hipocrisia, reencontremos o caminho para a superação do racismo, do machismo, da lgbtfobia e da profunda desigualdade econômica que macula nosso Brasil.           

 [P1]

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

13 + 1 =